Conheça a máquina de difamação de Hollywood usada no caso Blake Lively: ‘Podemos enterrar qualquer um’

No verão passado, quando o lançamento de “É assim que acaba” se aproximava, Justin Baldoni, o diretor e estrela do filme, e Jamey Heath, o produtor principal, contrataram um relações públicas especializado em gerenciamento de crise.

Durante as filmagens, a coprotagonista Blake Lively reclamou que os dois haviam repetidamente violado limites de toques físicos e feito comentários sexuais inapropriados para ela. O estúdio deles, Wayfarer, concordou em fornecer um coordenador de intimidade em tempo integral, trazer um produtor externo e colocar outras salvaguardas no set. Em um adendo ao contrato de Lively, assinado por Heath, o estúdio também concordou em não retaliar contra a atriz.

Mas em agosto, os dois homens, que se posicionaram como aliados feministas na era #MeToo, expressaram medo de que as alegações dela se tornassem públicas e manchassem suas reputações, de acordo com um processo aberto por ela na última sexta-feira. Lively alega que o esforço de relações públicas deles tinha um objetivo explícito: prejudicar a reputação dela no lugar da deles próprias.

O processo dela inclui trechos de milhares de páginas de mensagens de texto e e-mails que ela obteve por meio de uma intimação. Esses e outros documentos foram revisados pelo “New York Times”.

Há muito tempo há figuras nos bastidores moldando a opinião pública sobre celebridades — por meio de colunas de fofocas, tabloides e entrevistas estratégicas. Os documentos mostram um manual mais avançado para travar uma campanha de difamação quase indetectável na era digital. Embora o filme, sobre violência doméstica, tenha sido um sucesso de bilheteria — arrecadando quase US$ 350 milhões em todo o mundo — as críticas à atriz tomaram conta das redes.

“Ele quer sentir que ela pode ser enterrada”, escreveu um publicitário que trabalhava com o estúdio e com Baldoni, numa mensagem de 2 de agosto para a especialista em gerenciamento de crises, Melissa Nathan.

“Você sabe que podemos enterrar qualquer um”, escreveu Nathan, que teve entre seus clientes o ator Johnny Depp e os rappers Drake e Travis Scott.

As mensagens de texto mostram como, nas semanas seguintes, Nathan foi duro com a imprensa, pressionando para impedir matérias sobre o comportamento de Baldoni e reforçar as histórias negativas sobre Lively. Jed Wallace, um autointitulado “mercenário”, liderou a estratégia digital que incluía impulsionar postagens nas redes sociais positivas para sua causa.

Um advogado da Wayfarer disse em uma declaração ao “Times” que o estúdio, seus executivos e representantes de relações públicas “não fizeram nada proativo nem retaliaram” contra Lively, e acusaram a atriz de “outra tentativa desesperada de ‘consertar’ sua reputação negativa”.

“Essas alegações são completamente falsas, ultrajantes e intencionalmente obscenas com a intenção de prejudicar publicamente e recriar uma narrativa na mídia”, escreveu o advogado, Bryan Freedman.

Freedman não comentou as alegações sobre má conduta de Baldoni e Heath durante as filmagens. Ele alegou que Lively plantou “na mídia histórias negativas, completamente fabricadas e falsas” sobre Baldoni que, segundo ele, “foram mais uma razão pela qual a Wayfarer Studios tomou a decisão de contratar um profissional de crise”.

O esforço para manchar a imagem de Lively parece ter dado resultado. Poucos dias após o lançamento do filme, a cobertura negativa da mídia e os comentários críticos passaram a representar uma porcentagem excepcionalmente alta de sua presença online, de acordo com uma análise forense solicitada por ela a um consultor de marketing de marca.

Lively, casada com o ator e empresário Ryan Reynolds, famoso por “Deadpool”, e amiga de Taylor Swift, sofreu o maior golpe de reputação em sua carreira. Ela foi rotulada como insensível, difícil de trabalhar e intimidadora. As vendas de sua nova linha de cuidados capilares despencaram.

“Blake Lively está prestes a ser CANCELADA?”, dizia uma manchete do Daily Mail uma semana após os ataques.

Baldoni, por outro lado, saiu praticamente ileso. Este mês, ele foi homenageado num evento repleto de estrelas celebrando homens que “elevam as mulheres, combatem a violência de gênero e promovem a igualdade de gênero em todo o mundo”. No sábado, no entanto, após a publicação deste artigo, a agência de talentos William Morris Endeavor parou de representar Baldoni, disse Ari Emanuel, CEO da Endeavor, empresa controladora da agência.

A denúncia de Lively — contra Baldoni; Heath; Wayfarer; Steve Sarowitz, cofundador do estúdio; Wallace; Nathan; e Jennifer Abel, outra executiva de relações públicas envolvida na campanha — alega assédio sexual e retaliação, entre outras acusações. A denúncia, apresentada ao Departamento de Direitos Civis da Califórnia, é um passo preliminar para uma ação judicial.

Em uma declaração, Lively afirmou: “Espero que minha ação legal ajude a expor essas táticas sombrias de retaliação para prejudicar pessoas que denunciam má conduta e contribua para proteger outras que possam ser alvo.” A atriz também negou que ela ou qualquer um de seus representantes tenha plantado ou disseminado informações negativas sobre Baldoni ou a Wayfarer.

‘Deveríamos ter um plano’

Em maio, vários meses após o término das filmagens, Baldoni percebeu que Reynolds o havia bloqueado no Instagram.

“Deveríamos ter um plano SE ela fizer o mesmo quando o filme estrear”, Baldoni escreveu sobre Lively em uma troca de texto que incluía Abel, um publicitário que trabalhou com ele e Wayfarer por muito tempo. “Planos me deixam mais tranquilo.”

Baldoni, 40, e Heath, 55, tinham muito em jogo no filme, que é baseado em um romance best-seller de Colleen Hoover. Baldoni era mais conhecido pela comédia romântica “Jane the Virgin”. A Wayfarer entrou com os recursos para ambições maiores, com financiamento do bilionário Steve Sarowitz, copresidente do estúdio com Baldoni. Eles e Heath, o CEO, estão profundamente envolvidos com a organização religiosa Baha’i, que promove a unidade, a paz e a igualdade de gênero. Baldoni se apresenta como um aliado das mulheres, com livros escritos, um podcast ao lado de Heath e palestras sobre masculinidade tóxica.

Lively, 37, era de longe a maior estrela do filme. Ela alcançou a fama com a série “Gossip Girl” e fez filmes que vão de apareceu em filmes que vão de “Quatro Amigas e um Jeans Viajante” a “Atração perigosa”. Ela mantém negócios fora da indústria do entretenimento, apareceu nas capas de revistas de luxo e acumula mais de 45 milhões de seguidores no Instagram.

A atriz expressou preocupações com o comportamento de Baldoni desde o início, de acordo com sua queixa legal. Antes do começo das filmagens, por exemplo, ela se opôs a cenas de sexo que ele queria acrescentar e ela considerava gratuitas.

Em novembro de 2023, enquanto o elenco de “É assim que acaba” se preparava para retomar as filmagens após uma longa greve de roteiristas, Lively foi até a Wayfarer com o adendo ao contrato buscando proteção.

“Nossa cliente está disposta a abrir mão de um processo de RH mais formal em favor de todos retornarem ao trabalho e terminarem o filme, desde que o set esteja seguro para seguir em frente”, escreveu sua equipe jurídica ao estúdio.

Insatisfações de Coleen Hoover

Ela detalhou suas queixas durante uma reunião com Baldoni, Heath e outros produtores em janeiro, de acordo com o processo legal. A atriz alegou que Baldoni improvisou beijos indesejados e discutiu sua vida sexual, incluindo encontros nos quais ele não teria recebido consentimento.

Heath, segundo ela, mostrou um vídeo de sua esposa nua e ficou olhando Lively, em seu trailer, de topless enquanto tinha a maquiagem do corpo removida, apesar dela ter pedido para ele não olhar. Ela diz que os dois entravam repetidamente em seu trailer de maquiagem sem serem convidados enquanto ela estava nua, incluindo quando ela estava amamentando.

Ao concordar com os termos que Lively buscava, Wayfarer reconheceu que “Embora nossa perspectiva difira em muitos aspectos, garantir um ambiente seguro para todos é primordial”, de acordo com a queixa legal. Meses depois, Lively disse a colegas de trabalho que o comportamento deles havia melhorado com as novas proteções.

Mas então começou uma batalha criativa entre eles. Com o apoio da Sony, a distribuidora da obra, ela fez seu próprio corte do filme, trazendo editores e um compositor e adicionando uma das músicas de Swift. No final, Sony e Wayfarer aceitaram o corte de Lively, e ela recebeu um crédito de produtora.

À medida que o lançamento se aproximava, Lively e outros membros do elenco informaram Sony e Wayfarer que não fariam nenhuma aparição ao lado de Baldoni. O mesmo aconteceu com Hoover, a autora, que tinha suas próprias insatisfações com ele e ficou mais chateada depois que ele lhe contou sobre as alegações de Lively, de acordo com mensagens de texto de Baldoni e Heath.

‘Mais importante, indetectável’

Na primeira semana de agosto, Wayfarer e Baldoni contrataram Nathan, que havia trabalhado com clientes de alto perfil, incluindo Depp, cuja ex-esposa, Amber Heard, o acusou de abuso físico. Depp processou Heard por difamação, com sucesso, e o julgamento se tornou um espetáculo em meio a suspeitas de uma campanha online para prejudicar credibilidade dela.

Este ano, após uma década na consultoria Hiltzik Strategies, de Nova York, Nathan abriu sua própria empresa, a TAG PR. Seu acionista majoritário é uma empresa administrada pelo executivo da indústria do entretenimento Scooter Braun.

Num documento sobre o planejamento inicial enviado a Wayfarer e Baldoni em 2 de agosto, Nathan sugeriu temas a serem discutidos na mídia, incluindo que Lively usou um desequilíbrio de poder para assumir o controle criativo do filme.

Mas Baldoni queria mais. “Não me empolguei com documento que eles mandaram”, ele respondeu em uma troca de mensagens que incluía Abel e Heath. “Não tenho certeza se estou sentindo a proteção que senti na ligação.”

Abel transmitiu sua frustração a Nathan: “Acho que vocês precisam ser durões e mostrar a força do que podem fazer nesses cenários. Ele quer sentir que ela pode ser enterrada.”

“Claro, mas você sabe que quando enviamos documentos, não podemos enviar o trabalho que faremos ou poderíamos fazer porque isso pode nos causar muitos problemas”, Nathan respondeu, acrescentando: “Não podemos escrever que vamos destruí-la.”

Momentos depois, ela disse: “Imagine se um documento dizendo todas as coisas que ele quer acabar nas mãos erradas. Você sabe que podemos enterrar qualquer um”, ela escreveu.

Três dias depois, Baldoni enviou uma mensagem de texto para Abel, sinalizando um tópico de mídia social que acusava outra celebridade de bullying e havia gerado 19 milhões de visualizações. “É disso que precisamos”, escreveu.

Nathan logo lançou propostas para contratar pessoas para dominar a mídia social por meio de “remoções completas de contas sociais”, iniciando “tópicos com teorias” e trabalhando para “mudar a narrativa”.

“Tudo isso será, acima de tudo, indetectável”, ela escreveu.

‘É por isso que você me contratou’

A estreia, em 6 de agosto, trouxe a primeira onda de cobertura da imprensa questionando o que havia acontecido durante as filmagens. Uma história do “Hollywood Reporter” especulou sobre uma rixa entre Lively e Baldoni, depois que TikTokers notaram que as duas estrelas não posaram para fotos juntas e que Lively e outros membros do elenco não seguiam Baldoni no Instagram.

Nathan já estava falando com outros jornalistas, de acordo com mensagens de texto. Quando Abel escreveu para ela em 4 de agosto que “estou tendo pensamentos imprudentes de querer plantar peças esta semana sobre o quão horrível é trabalhar com Blake. Só para me adiantar”, Nathan respondeu que ela havia falado em off com uma editora do “Daily Mail”. “Ela está pronta quando nós estivermos”, escreveu Nathan.

Uma enxurrada de artigos seguiu a peça do “Hollywood Reporter”. Muitos fizeram parecer que a única rixa era sobre controle criativo. Alguns jornalistas ficaram sabendo de reclamações sobre o comportamento de Baldoni, mas nenhuma das denúncias mais sérias foi publicada. “Ele não percebe a sorte que tem agora”, Nathan mandou uma mensagem para Abel.

Em outras trocas, Nathan afirmou que ela havia mantido as alegações contra ele fora das reportagens, escrevendo em uma mensagem que os principais veículos de notícias estavam “recuando sobre a reclamação de RH”.

Enquanto isso, uma reação online contra Lively estava em andamento. É impossível saber quanta publicidade negativa foi semeada por Nathan, Wallace e sua equipe, e o quanto eles perceberam e amplificaram.

Em 10 de agosto, Kjersti Flaa, uma repórter de entretenimento norueguesa, publicou no YouTube uma entrevista de 2016 na qual Lively respondeu de forma ríspida quando Flaa comentou sobre sua “barriguinha de grávida” e permaneceu irritada durante o restante da conversa. Flaa intitulou o vídeo como “A entrevista com Blake Lively que me fez querer desistir do meu trabalho” e disse ao “Daily Mail” que “é hora de pessoas que se comportam mal em Hollywood, ou em qualquer outro lugar, serem responsabilizadas por isso.”

Não foi a primeira vez que ela postou um vídeo alinhado com um cliente de Nathan. Em 2022, no meio da batalha legal de Depp com Heard, Flaa postou clipes de suas entrevistas com o ator, com a tag #JusticeForJohnnyDepp.

Durante o lançamento do filme, Lively também foi acusada de ser insensível sobre violência doméstica. O plano oficial de promoção instruiu o elenco a se concentrar mais nos aspectos edificantes do filme do que no abuso, e a adotar um tema floral (sua personagem tem uma floricultura). Em várias aparições, ela nunca fez referência à violência doméstica. E enfrentou críticas quando sua empresa de bebidas Betty Booze estava promovendo o filme, dado o papel que o álcool pode desempenhar em relacionamentos abusivos.

Vendo essa reação negativa, as mensagens de texto mostram que Baldoni e sua equipe de RP decidiram, em vez disso, destacar sobreviventes de violência doméstica em suas entrevistas e mídias sociais.

Mais críticas vieram quando Lively disse em uma entrevista que Reynolds, que não teve nenhum papel no filme, ajudou a reescrever uma cena, provocando comentários sarcásticos sobre a atriz se apoiando em seu marido e especulações de que ele havia violado a greve dos roteiristas.

Não está claro exatamente como Wallace operou. Há referências em e-mails a “manipulação social” e “postagens proativas de fãs”, e mensagens de texto citam esforços para “impulsionar” e “amplificar” conteúdo online que era favorável a Baldoni ou crítico a Lively.

“Estamos arrasando no Reddit”, Wallace disse a Nathan, de acordo com uma mensagem que ela enviou a Abel em 9 de agosto.

Ataque direcionado

Ao longo das trocas de texto, Baldoni encoraja a equipe de RP, às vezes sinalizando postagens de mídia social que podem ser usadas. Em 15 de agosto, ele propõe “inverter a narrativa” em uma história positiva sobre Lively e seu marido “usando suas próprias palavras contra eles”. Outras vezes, ele parece vacilar, buscando garantias sobre as táticas que estão sendo empregadas.

Quando ele nota um artigo de tabloide criticando Lively, ele envia uma mensagem preocupada: “Como podemos dizer de alguma forma que não estamos fazendo nada disso — parece que estamos tentando derrubá-la.” Em outra ocasião, ele se perguntou se eles estavam implantando contas falsas de “bot” nas mídias sociais.

“Posso afirmar que absolutamente não temos bots”, escreveu Nathan, acrescentando que qualquer equipe digital seria inteligente demais para “utilizar algo tão óbvio”. A operação de Wallace, ela escreveu, “está fazendo algo muito específico nos termos do trabalho deles. Sei que Jamey e Jed estão conectados nisso.”

Baldoni, Nathan e outros na equipe alegaram nas trocas de texto que Lively estava usando sua própria equipe de relações públicas para criar má publicidade sobre Baldoni, mas não citaram nenhuma evidência para apoiar essas alegações.

Em meados de agosto, a equipe estava se deleitando com os danos à imagem de Lively. Em 16 de agosto, Nathan compartilhou o artigo do “Daily Mail” intitulado “Blake Lively está prestes a ser CANCELADA?” com referências a vídeos “difíceis de assistir” e um Q&A promocional “insensível”.

“Uau. Você realmente se superou com esta peça”, respondeu Abel.

“É por isso que você me contratou, certo?” Nathan respondeu. “Eu sou a melhor.”

Uma consultoria de marketing, Terakeet, produziu um relatório em agosto para Lively concluindo que ela provavelmente tinha sido objeto de um “ataque online multicanal direcionado” semelhante ao que ocorreu contra Heard, e que isso estava prejudicando sua reputação. O relatório não identificou quem estava por trás do ataque.

Mas ao analisar “a totalidade do índice de pesquisa do Google” para o nome de Lively, descobriu que 35% dos resultados também incluíam uma referência a Baldoni. Isso era altamente incomum, dada a duração de sua carreira, disse a empresa, e sugeria que o ambiente da mídia estava sendo manipulado.

Um relatório separado, da empresa de cuidados capilares de Lively, Blake Brown, concluiu que o ataque da mídia social também teve um efeito negativo naquele negócio. Sua linha de produtos, que foi lançada em agosto com vendas recordes, estima que perdeu até 78% em vendas.

Com a recente chegada de “É assim que acaba” na Netflix, Baldoni começou outra rodada de promoção e mensagens. Em uma entrevista no “Access Hollywood”, ele disse que “nunca há uma desculpa” para “ferir uma mulher, física ou emocionalmente”. E acrescentou: “Nós, homens, temos que nos esforçar e descobrir como podemos ser melhores aliados”.

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