Quando Victor Ambros e Gary Ruvkun publicaram, em 1993, um artigo descrevendo um novo nível de regulação genética, houve pouca reação da comunidade científica. A descoberta, baseada no estudo de um pequeno verme, era, de fato, surpreendente, mas parecia se aplicar somente ao C. elegans, um organismo redondo de 1mm de comprimento. O trabalho da dupla foi reconhecido com o Nobel de Medicina, considerado o prêmio mais importante da área.
Se, há três décadas, a descoberta de Ambros e Ruvkun pareceu limitada a um verme, nos últimos anos, estudos revelaram que o genoma humano contém cerca de 1 mil microRNAs, ou miRNAs, que poderiam controlar, coletivamente, a maioria dos genes produtores de proteínas. Agora, essas pequenas moléculas são usadas na prática clínica para identificar tumores, além de serem a base de alguns ensaios clínicos de medicamentos para doenças cardíacas. Também estão implicadas no potencial de vírus causarem doenças, na regulação da função neural e nas investigações sobre células-tronco.
Iniciado nos anos 1980, o trabalho da dupla revelou que as então desconhecidas moléculas de microRNAs são reguladores essenciais do desenvolvimento normal e da fisiologia de animais e plantas. “A pesquisa de Ruvkun e Ambros combina elegantemente biologia evolutiva e genética e revela uma dimensão completamente nova da regulação genética”, comentou George Q. Daley, reitor da Harvard Medical School, instituição onde Ruvkun leciona genética. “Essa pesquisa movida pela curiosidade é um exemplo poderoso de como a descoberta fundamental pode fornecer insights que iluminam as causas da doença e, consequentemente, podem beneficiar a humanidade.”
O presidente da Universidade de Harvard, Alan M. Garber, lembrou que, embora as descobertas dos laureados tenham identificado a “maquinaria bioquímica pela qual RNAs de diferentes classes são gerados” e regulam seus genes-alvos, no início, as aplicações práticas não pareciam evidentes. “As implicações dessas descobertas nem sempre são óbvias no início. Com aplicações médicas promissoras da pesquisa de microRNA no horizonte, somos lembrados — novamente — de que a pesquisa básica pode levar a um progresso dramático no tratamento de doenças humanas.”
Histórico
Desde meados do século 20, descobertas fundamentais explicaram como as informações contidas em um gene são transformadas em proteínas, executando as mais diversas funções no organismo. Todas as células contêm o mesmo código genético, mas cada uma é responsável por um papel totalmente diferente, e o que explica isso é a regulação precisa de sua atividade.
Na década de 1960, foi demonstrado que proteínas especializadas, conhecidas como fatores de transcrição, podem se ligar a regiões específicas no DNA e controlar o fluxo de informações genéticas determinando quais RNAs mensageiros são produzidos. Desde então, milhares de fatores de transcrição foram identificados e, por muito tempo, parecia que a questão já estava fechada.
Porém, em 1993, os laureados do Nobel de Medicina deste ano publicaram descobertas inesperadas, descrevendo um novo nível de regulação genética, conservado ao longo da evolução. O trabalho é fruto de pesquisas de Victor Ambros e Gary Ruvkun, que, no fim dos anos 1980, eram bolsistas de pós-doutorado no laboratório de Robert Horvitz, em Boston.
Os cientistas usaram o verme C. elegans como modelo. Embora seja um microorganismo muito pequeno, ele tem vários tipos de células especializadas, como nervosas e musculares, também encontradas em animais maiores e mais complexos.
Ambros e Ruvkun estavam interessados em genes que controlam o tempo de ativação de diferentes programas genéticos, garantindo que os diferentes tipos celulares se desenvolvem no momento correto. Eles, então, escolheram duas linhagens mutantes de vermes, que os levariam a descobrir um novo tipo de regulação genética, o microRNA. Os resultados foram publicados em dois artigos na revista Cell.
Em 2000, pesquisas no laboratório de Ruvkun descobriram que o mecanismo estava presente em muitas outras criaturas, incluindo humanos, moscas-da-fruta, galinhas, sapos, peixes-zebra, moluscos e ouriços-do-mar. Enfim, o microRNA não era mais uma mera curiosidade identificada em um verme.
As pesquisas na área foram intensificadas no mundo todo, e Ambros e Ruvkun tornaram-se os cientistas mais citados nos estudos sobre microRNA. “Gary e Victor são cientistas excepcionais que expandiram fundamentalmente nossa compreensão de como os genes são regulados. Sua homenagem com o Prêmio Nobel é muito merecida”, comentou Cliff Tabin, chefe do Departamento de Genética da Harvard Medical School.
Em entrevista ao site do Nobel, Gary Ruvkun, 72 anos, brincou que já havia recebido alguns trotes em anos anteriores, sobre ganhar o Nobel. “Parece que, agora, a ligação é autêntica. Sempre há uma chance de ser brincadeira de um dos meus amigos.” Já Victor Ambros, 70, se disse surpreso e afirmou que a láurea foi uma “celebração da forma como fazemos ciência”.
As informações armazenadas nos cromossomos podem ser comparadas a um manual de instruções para todas as células do corpo. Cada uma delas contém os mesmos cromossomos, então todas exibem exatamente o mesmo conjunto de genes e de instruções.
Porém, diferentes grupos celulares — como os dos tecidos musculares e nervosos — têm características muito distintas. Essa diversidade pode ser explicada pela regulação gênica, que permite selecionar apenas as instruções relevantes para células específicas.
Os microRNAs são fragmentos de ácido ribonucleico, presentes nas células e sintetizados pelo organismo a partir de genes contidos no DNA. Essas moléculas não desempenham o papel mais conhecido do RNA, que é o de intermediário entre os genes e a produção das inúmeras proteínas indispensáveis para o funcionamento de um organismo.
Em vez disso, os microRNAs fazem parte do chamado RNA “não codificante”, ou seja, não são traduzidos em proteínas. Mas isso não significa que não desempenhem um papel.
As pequeninas moléculas interferem no funcionamento do RNA mensageiro. É como um velcro que se adere a ele, impedindo que seja traduzido em proteínas. A consequência é que certos genes são inibidos enquanto outros são intensificados.
A descoberta abriu caminho para uma área completamente nova da biologia celular. Várias empresas de biotecnologia investem há anos nos microRNAS, considerados um campo especialmente promissor contra o câncer.
Porém, embora o conhecimento sobre os microRNAs já permita uma compreensão muito melhor do genoma, ainda é incerto se poderão servir como uma alavanca para curar doenças. Por enquanto, cientistas apostam na utilidade clínica das moléculas como biomarcadores, ou seja, ferramentas precisas de diagnóstico.
Flávio Cure, cardiologista clínico e coordenador do Centro de Estudos do CopaStar, ressalta que, recentemente, um estudo sugeriu que os microRNAs são os candidatos promissores para diagnosticar a toxicidade cardiovascular associada à quimioterapia. “O microRNA circulante é estável e pode guardar uma relação direta com os mecanismos de cardiotoxicidade”, explica. Assim, Cure esclarece que será mais fácil identificar, precocemente, pacientes que estão sofrendo sequelas do tratamento no coração. (PO)
Essas sequências de RNA desempenham um papel fundamental na expressão gênica, dando uma função específica a cada tipo de célula. O nome microRNA vem do fato de que são sequências muito pequenas, apenas 22 nucleotídeos, mas seu potencial na célula é enorme. Na verdade, aumentos ou diminuições em sua expressão estão associados a várias doenças. Estou particularmente animado com a premiação do Nobel porque estudo como a desregulação de microRNA afeta várias doenças, como tumores, e mais especificamente uma doença rara, a síndrome 22q11.
Guillermo Peris Ripollés, pesquisador do Centro de Genômica e Oncologia Genyo em Granada, na Espanha
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