Novo consumo: em 15 anos, brasileiro descobriu a paixão pelo smartphone e a comodidade do app de transporte

Na última década e meia, enquanto a economia brasileira vivia montanha-russa inédita, um turbilhão caleidoscópico chacoalhou os hábitos do consumidor. A lista a seguir comprova que a hipérbole é justa. Foi nesse tempo que: o brasileiro caiu de amores pelo smartphone; rendeu-se a seus apps, fazendo deles canal direto com as marcas, do banco ao mercadinho da esquina, e até a alternativa ao carro novo — provavelmente um SUV —, que nunca ficou tanto na garagem.

Comeu menos em casa, mas, quando cozinhou, reabasteceu a despensa no “atacarejo” mais próximo; caiu de cabeça no e-commerce, importando até “blusinhas” diretamente da China, sempre recorrendo a dicas pinçadas no Instagram; com o empurrão daquelas mesmas influenciadoras, converteu-se a maquiagens e tratamentos para pele; e passou a se preocupar com os atributos socioambientais dos produtos que compra.

Essa mudança de hábitos foi capturada pela Marcas dos Cariocas, cuja primeira edição foi publicada em 2010. Para dar conta dessa transformação, a revista aumentou o rol de categorias pesquisadas — de 29 para as atuais 43 —, incluindo produtos e segmentos que passaram a fazer parte da vida do consumidor carioca, como aparelho de celular e tablet e aplicativo de transporte.

A maior diversificação da cesta de compras abriu espaço para produtos que ganham protagonismo na economia, como marcas de produtos e serviços para pets, cuidados com bebê e café — que ganhou status suficiente para ter uma categoria para chamar de sua, fazendo companhia à cerveja.

Ao mesmo tempo, a pesquisa passou a refletir dimensões que se tornaram determinantes na relação entre marcas e consumidores, como critérios ESG. A sigla em inglês para atributos ambientais, sociais e de governança nem sequer existia há 15 anos, aliás.

Serviços ganham peso no orçamento

Tamanha transformação não se deu no vazio, mas em um contexto que combina choques econômicos em série e inovações tecnológicas, lembra Fabio Bentes, economista-sênior da Confederação Nacional do Comércio (CNC). Na esfera macroeconômica, o que chama a atenção é uma sucessão de ciclos intensos: uma aceleração inédita do consumo no início da década passada, seguida por uma recessão histórica, uma pandemia e, por fim, estagnação que começa a dar sinais de alívio.

— Ancorado no maior acesso a crédito, o varejo viveu um verdadeiro ciclo de ouro entre 2004 e 2014. Nesse período, experimentou taxas de crescimento com as quais não estava acostumado, de dois dígitos até. Depois veio a crise, a pandemia e, de 2019 para cá, o setor cresceu sempre pouco, abaixo de 2% — resume o especialista. — A expansão pelo crédito nunca é infinita. Em determinado momento esbarra em inadimplência.

Em 2023, o varejo cresceu apenas 1,7%, segundo a Pesquisa Mensal do Comércio (PMC), do IBGE. Este ano, porém, a expectativa de Bentes é que o indicador avance 4,5%, graças à pujança do mercado de trabalho, que se sobrepõe aos juros elevados.

Enquanto o varejo perdia fôlego, ocorria o que o economista chama de “servicização” do consumo. Bentes lembra que, de 2012 para 2024, o peso dos serviços na cesta levada em conta pelo IBGE para calcular a inflação cresceu de 33% para 36%.

— A mudança no hábito de consumo do brasileiro é um processo que mistura “servicização”, recomposição dos gastos com bens de consumo, com a força dos eletroeletrônicos, e a emergência do e-commerce — explica.

Alimentação fora de casa

Em resumo, o brasileiro está gastando menos com alimentação, vestuário e carro, e mais com saúde, educação e cuidados pessoais, mostram dados das Pesquisas de Orçamentos Familiares (POF), publicadas pelo IBGE.

A mudança não foi drástica, porém. Na alimentação, o recuo foi de 16,1% para 14,2% das despesas. E a refeição fora de casa já representa um terço (32,8%) de quanto os brasileiros gastam com comida. Segundo o IBGE, o maior acesso ao mercado de trabalho reduziu o tempo disponível para cozinhar em casa.

Ao mesmo tempo, houve diminuição no consumo de itens típicos do prato do brasileiro, como o feijão. Em 15 anos, a presença do item nos lares caiu à metade.

Em vestuário, os gastos recuaram de 4,5% para 3,4% de todo o orçamento. Nos transportes, a diminuição foi de 16% para 14,5%. No caso de gastos com aquisição de veículo e combustíveis, o percentual foi de 10% para 9%.

— Ficou mais difícil encher o tanque, o carro ficou mais caro, e as pessoas passaram a privilegiar transporte público e de aplicativo, além do avanço do trabalho remoto. No vestuário, o peso do gasto caiu, mas o IBGE não consegue capturar o fenômeno do comércio crossborder de sites como Shein, que capturou parte do varejo brasileiro de vestuário — diz Bentes.

Na outra ponta, os brasileiros gastam em média 3,8% do orçamento com educação, contra 2,5% uma década antes. Na assistência à saúde, o percentual foi de 5,9% para 6,5%. Com higiene e cuidados pessoais, a elevação foi de 1,9% para 2,9%.

Nos eletroeletrônicos, o surgimento de novas categorias embaralhou o jogo nesses últimos 15 anos.

Dados dos fabricantes apontam para o crescimento de produtos que, embora mais caros, convergem diversos segmentos num só item.

— O smartphone absorveu sozinho muitos eletroeletrônicos, disputando com categorias como câmeras digitais, videogames e até TVs, graças ao streaming. A air-fryer, cujas vendas não perdem o fôlego, diminui a demanda por micro-ondas e forno tradicional. A escova giratória se tornou um fenômeno, mas reduz o apelo de secadores e da chapinha. O aspirador de pó cresce bem, mas o robô-aspirador cresce ainda mais. Na pandemia, aliás, ele chegou a crescer 2.000% — explica Jorge Nascimento, presidente-executivo da Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletrônicos (Eletros).

Os choques econômicos fizeram emergir outras tendências. Da recessão entre 2015 e 2016, explodiu a demanda pelo “atacarejo”, observa Rafael Couto, da firma de análise de mercado Kantar:

— Até lá, a penetração do “atacarejo” entre os consumidores pessoas físicas era de 45%. De lá para cá, a taxa quase dobrou, para perto de 90%. Isso quer dizer que nove em cada dez famílias brasileiras compram pelo menos uma vez por ano no “atacarejo”.

Mais parâmetros de escolha

A pandemia foi o catalisador óbvio do e-commerce. No ano passado, o segmento movimentou R$ 254,4 bilhões em vendas, de acordo com números da NielsenIQ Ebit. Em 2019, a mesma consultoria calculou que as receitas do comércio eletrônico não chegavam a R$ 80 bilhões (valor atualizado). Ou seja, o varejo on-line mais que triplicou.

Segundo a Kantar, a pandemia permitiu que o e-commerce avançasse sobre bens de consumo não duráveis, aqueles que costumavam ser comprados apenas no supermercado. Sua penetração no segmento era de 6% em 2020; hoje, está em 25%.

— Além de ser um novo canal, o e-commerce mudou a dinâmica de consumo. Ele ensina o consumidor a comparar preço rapidamente, aumentou a oferta de parâmetros de escolha — diz Couto, acrescentando que sua expansão se deu em paralelo à do fenômeno dos influenciadores, que passaram a desempenhar papel decisivo na jornada de pesquisa de produtos.

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