O mundo está de olho na Reforma Tributária no Brasil, disse a tributarista portuguesa Rita de la Feria, professora de Direito Tributário na Universidade de Leeds, no Reino Unido. Segundo a especialista, tributaristas, consultorias e empresas que já atuam no país ou querem investir, mas temem a burocracia brasileira, aguardam melhorias no “pior sistema tributário sobre o consumo do mundo”.
Para ela, isenções e alíquotas mais baixas para determinados produtos e serviços pioram a reforma, mas não tem como o novo sistema não ser melhor do que o atual. Além disso, para melhorar a “justiça tributária”, é mais importante reforçar o mecanismo do cashback do que reformar a tributação sobre a renda.
Por que o Brasil demorou tanto a fazer a reforma?
O problema no Brasil nunca foi a questão técnica, porque vocês têm especialistas há muitos anos a dizer a mesma coisa. Desde o tempo da Constituinte, começou-se a discutir a questão da introdução do IVA. Vocês sabem, há muitos anos, que têm uma tributação sobre o consumo muito problemática.
Na verdade, não há IVAs perfeitos no mundo, mas, efetivamente, na minha experiência, o pior sistema de tributação sobre o consumo que existe no mundo neste momento é o brasileiro.
E isso é refletido nos vossos custos da conformidade, que são maiores do que no resto do mundo todo. Nos vossos custos de litígio, que são absolutamente surreais. Vocês têm níveis de contencioso que são enormíssimos. Portanto, o Brasil tem estado a pagar um custo muito elevado pelo fato de que não aderiu à reforma.
Há problemas particulares do Brasil em relação à reforma?
É um país muito grande, com um sistema federal com uma característica específica, que é única na minha experiência, inclusive comparativamente à Índia: o Brasil tem um sistema federal a três níveis (federal, estadual e municipal). A maioria dos outros países tem a dois níveis.
Na maioria dos países que têm sistema federal, a descentralização do poder tributário é só para estados ou províncias. Não tem o terceiro nível (dos municípios). Isso dificultou muito a reforma do Brasil. O atraso tem a ver com o fato de que o vosso sistema é tripartidário e é ruim há muitos anos.
A longevidade do sistema ruim atrapalha?
Vocês têm esse sistema há muito tempo, com interesses muito cimentados. Há pessoas que já estão habituadas a este sistema e têm interesse investido, há muitos e muitos anos. Em todas as reformas, há sempre quem ganha e quem perde. No caso do Brasil, como o sistema já existe há muitos anos, há muitos já adaptados a este sistema ruim, portanto, os grupos que vão perder vão perder muito e vão lutar muito mais (contra).
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Título: O que é a reforma tributária?
Subtítulo: O Globo – Economia
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Há uma teoria que está bem explicada na economia, sobre benefícios difusos e custos concentrados. O que está a passar no Brasil é isto, com o agravante dessa questão constitucional (da federação). Na ciência política, normalmente, diz-se que há quanto mais tempo um sistema está em vigor, mais improvável é que seja mudado.
Então, fazer a reforma no Brasil é um feito histórico?
Só talvez quem está mais envolvido em questões internacionais é que tem a apreciação da magnitude dessa mudança no Brasil na comunidade tributária internacional. Há uma grande atenção ao que está a passar no Brasil, por parte das organizações internacionais, como a OCDE, o FMI e o Banco Mundial, mas também ao nível de tributaristas que trabalham todos os dias no ramo, empresas que têm investimentos no Brasil.
Há uma grande expectativa relativamente a essa reforma. O Brasil tem uma economia muito grande, há muitas empresas que têm interesse no mercado brasileiro, que já estão no Brasil ou querem investir no Brasil. Muitas delas tiveram uma experiência de fazer negócios no Brasil e ver o horror que é o vosso sistema tributário.
O que o Brasil tem a aprender com a reforma da Índia?
Claramente que os resultados são positivos. E estou certa de que os resultados serão positivos para o Brasil, porque as reformas tributárias raramente são ótimas. Na sua maioria, são um jogo de vantagens comparativas. E o contrafactual do Brasil é o que se tem agora, que é péssimo.
Não tem como piorar. Portanto, em termos de vantagens comparativas, será melhor do que se tem neste momento, mas a reforma da Índia é um bom exemplo para o Brasil sobre o preço das concessões.
Efetivamente, está a funcionar muito melhor do que a Índia tinha (antes), mas onde está a haver problemas é precisamente onde foram concedidas as exceções. A primeira vez que eu fui em audiência pública no Congresso (do Brasil), em março de 2020, foi-me perguntado sobre a Índia. Eu disse que a reforma da Índia estava a correr muito bem, mas o Brasil poderia fazer muito melhor.
O Brasil está fazendo melhor?
Basicamente os mesmos erros verificados na Índia estão a acontecer no Brasil. Ou seja, uma base tributável pior do que seria desejável, mais exceções, mais regimes especiais. Vai haver o mesmo efeito que houve na Índia: vai ser positivo no todo, mas vai haver problemas nesse nível das exceções.
Quando entrar em vigor, as exceções vão ser sentidas, vai começar a haver contencioso em volta das exceções, vai começar a haver problemas de elisão fiscal (quando as empresas fazem planejamento fiscal para fugir do imposto mais elevado) e vai começar a haver casos de interpretação e classificação.
Não vai ficar claro se novos produtos que aparecem no mercado estão sujeitos ao regime especial ou não. Mas vai continuar a ser melhor do que o sistema atual.
A reforma tem uma dimensão de justiça, pois a tributação sobre o consumo pesa mais sobre os mais pobres. É preciso reformar também a tributação sobre a renda?
A tributação incide mais sobre o consumo do que sobre a renda, não por uma opção de política tributária. Não estou aqui a dizer que a tributação sobre a renda no Brasil não deveria ser sujeita a reforma. Agora, não se pode presumir que, numa sociedade como a do Brasil, com o nível de desigualdade que tem, pode haver uma tributação sobre a renda que arrecade mais do que a tributação sobre o consumo.
Em quase todas as economias, excetuando os países muito ricos, a quantidade de pessoas que pode pagar imposto sobre a renda é um grupo muito pequeno. E quando o grupo é muito pequeno, a base tributável, ou seja, a quantidade de dinheiro que se consegue tirar dessas pessoas, é muito pequena, em termos absolutos. Mesmo que se tribute muito, essas pessoas são poucas.
Uma reforma da tributação sobre a renda traria pouca justiça tributária?
Para melhorar, em termos de desigualdade, tem que ser na tributação sobre o consumo. Essa reforma vai ajudar muito. Quanto menos exceções, mais dinheiro haverá para dar a quem não pode pagar, nos reembolsos de imposto, que vocês chamaram de cashback. O cashback vai ter efeito progressivo no sistema tributário.
Então seria melhor reforçá-lo?
Seria muito melhor. Pessoas que ganham mais gastam muito mais nas lojas do que pessoas com renda muito baixa. Se dermos isenção ou baixarmos a alíquota, os mais ricos é que vão se beneficiar da alíquota baixa. A melhor opção é tributar quem consome mais e depois dar de volta a quem efetivamente não pode pagar.
Portanto, o sistema de cashback é tecnicamente muito superior, para diminuir a desigualdade, do que dar isenções. Isso não quer dizer que a tributação sobre a renda não deva ser reformada, mas ela não é a bala de prata. A bala de prata é um sistema sobre o consumo que tenha uma progressividade embutida. E para embutir progressividade no sistema, o melhor é o cashback.
A tecnologia ajuda nisso, não?
Os sistemas tecnológicos podem fazer a devolução de forma automática. O Brasil tem um sistema sofisticadíssimo em termos de digitalização da administração tributária. Não há razão nenhuma para não usar esse sistema no cashback. O que está por trás disso (das isenções) são os lobbies, não é uma questão técnica.
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